O sonho acordado livre

Georges Romey
Excertos adaptados

O sonho acordado livre

Ninguém escreverá jamais o dicionário exaustivo e definitivo dos símbolos. Esta afirmação decorre da própria natureza da função simbólica. Se o símbolo fosse um código inerte, portador de um ou mais sentidos facilmente apreendidos, que pudéssemos identificar de uma vez por todas, algumas das melhores obras escritas até hoje por teóricos competentes responderiam satisfatoriamente às necessidades dos analistas. Mas estes experimentam frequentemente um sentimento de frustração na sua prática quotidiana.

A nossa intenção de escrevermos mais um dicionário de símbolos não traduzirá uma atitude arrogante? Passaremos a explicar a pertinência da abordagem diferente com que esta obra pretende contribuir para responder de forma mais adequada às necessidades quotidianas do analista.

Se nos cingirmos apenas às obras que consideramos sérias, e que excluem as fantasiosas “chaves de sonhos”, constataremos que há dois tipos de obras: as que se organizam em dicionários e se pretendem indicadoras do sentido e as que tentam tornar as estruturas do imaginário mais precisas. O sucesso de algumas destas obras atesta o seu mérito.

No entanto, a sua capacidade de responder às interrogações do psicólogo clínico parece-nos diminuída pela sua tendência para se referirem quase exclusivamente ao fundo cultural mitológico de diversas civilizações. Quanto ao segundo tipo de obras, o facto de repousarem constantemente nos escritos dos seus predecessores pressupõe que esses mesmos escritos sejam infalíveis. Esta atitude opõe-se à liberdade criadora.

O Dicionário da Simbólica é o produto de uma atitude e de referências completamente diferentes das que acabámos de evocar. A base de dados a partir da qual conduzimos a exploração quantitativa e qualitativa do universo simbólico é constituída a partir de observações clínicas. Nesse aspecto, é provavelmente único.

Resulta de dezasseis anos de prática do sonho acordado livre. Inventada por Robert Desoille em 1923, a técnica do sonho acordado constitui um método eficaz em psicoterapia. Lamentamos que seja ainda tão pouco conhecida da psicologia e do público.

As condições de aplicação da técnica são simples. O sujeito é colocado numa posição que favorece o relaxamento, ou seja, confortavelmente alongado. Após um compasso de espera, é convidado, a partir da primeira imagem que lhe surge espontaneamente, a estabelecer um encadeamento imaginário que vai descrevendo à medida que este se desenrola.

Todas as pessoas que pensam participar neste tipo de sessão têm medo no início. Medo de não ver imagens, medo de não saber exprimi-las. Uma prática assaz longa permite-nos afirmar que estas apreensões nunca se confirmaram, desde que a pessoa estivesse realmente disposta a viver o sonho. O abaixamento do metabolismo, consequência da situação de relaxamento, age de forma natural sobre a consciência.

O estado que se atinge não é nem o da consciência normal nem o do sono e favorece a emergência de imagens que exprimem a problemática do paciente. Transporta imagens entre o consciente e o inconsciente, reenvia para as vivências patogénicas da infância e permite uma total memorização do sonho.

O sonho, que os pacientes chamam de cenário, de tal forma o desfile de imagens se assemelha à projecção de um filme, obedece a leis que organizam a estrutura, a orientação espacial da acção e o material simbólico que se exprime no sonho. Robert Desoille salientou que alguns temas ou arquétipos se repetiam no decurso das primeiras curas que presenciou.

Esta constatação levou-o a conceber, no sentido de uma maior eficácia, um método segundo o qual ele fornecia ao sonhador um tema de partida para o sonho. Convencido da importância da dinâmica vertical, ele próprio fornecia ao paciente imagens de subida ou de descida que julgasse oportunas. Levava-os também a substituir imagens “negativas” por imagens “positivas”. Isto fez com que chamasse ao seu método sonho acordado dirigido. Posso testemunhar da sua validade aquando de um tratamento que fiz aos vinte e dois anos.

Em 1979, decidimos, após uma longa maturação, utilizar a técnica do sonho acordado. Queríamos aprofundar o estudo dos símbolos, ao mesmo tempo que queríamos continuar a ajudar as pessoas. Algumas sessões experimentais de sonho acordado, conduzidas na altura da preparação da obra Le Test de L’Arche de Noé, obra que versa o simbolismo dos animais, tinham demonstrado que sempre que uma imagem é proposta, uma série de associações se lhe segue automaticamente.

Ora, nós queríamos que todo o material de que viéssemos a dispor fosse isento de qualquer indução e emitido de forma completamente espontânea. Estávamos dispostos a alterar as nossas premissas se o resultado terapêutico não se revelasse satisfatório. Em breve nos demos conta de que este tipo de abordagem suscitava curas surpreendentemente eficazes. Identificámos os factores que as determinavam e que hoje nos parecem incontornáveis.

Abria-se assim o caminho para a realização dos nossos dois objectivos: a cura e a pesquisa. Ao fim de dois anos de prática, dispúnhamos de material suficiente para escrever Rêver pour Renaître, livro no qual explanámos muitas das premissas que continuam úteis na escrita do Dictionnaire de la Symbolique.

Reunimos centenas de exemplos que havíamos previamente gravado. Uma parte deles tinha-nos sido comunicada por duas psicólogas analíticas que utilizavam o mesmo método. Elaborámos então um repertório de 1700 símbolos, repartidos por 15 famílias. No decurso dos anos que se seguiram, os pacientes produziram milhares de cenários dos quais foram extraídos sistematicamente todos os símbolos que figuram no repertório.

Centenas de milhar de informações simbólicas constituíram uma base de dados excepcional de 6000 sonhos, cada um com a duração média de 35 a 40 minutos, resultantes da expressão espontânea de quase 300 pessoas. Ao longo deste livro, utilizaremos os termos paciente e sonhador para designarmos estes exploradores do imaginário. Em 70% dos casos, a gama das problemáticas cobria todos os tipos de desconforto psicológico, desde a banal angústia difusa à depressão característica, passando por todas as manifestações das dificuldades de relacionamento no plano familiar e social.

Isto significa que 30% dos casos empreenderam a cura por interesse puramente didáctico, curiosidade intelectual ou esperança de alargar o campo da consciência e, assim, melhorar a sua capacidade de criação. Quando comparamos o conteúdo simbólico dos sonhos produzidos pelas pessoas que compõem estes dois últimos subgrupos, não verificamos diferenças notórias.

A estrutura dos cenários, a frequência e a natureza dos símbolos, a forma de expressão são, em grande medida, independentes das causas que provocaram a busca inicial da terapia. Não há nenhuma correlação entre a qualidade do resultado terapêutico e os parâmetros observados: sexo, idade, nível cultural, tendência filosófica, riqueza verbal, duração dos cenários, originalidade simbólica, etc.

Esta constatação, por paradoxal que pareça, torna-se compreensível quando admitimos que os símbolos são as palavras de uma linguagem universal e que qualquer estado do ser pode ser expresso através deles. Esta constatação é válida, pelos menos, para os povos de cultura ocidental.

A tentativa de esquecer tudo o que foi escrito sobre um símbolo para o observar no seu meio vivo, sob um olhar tão novo quanto possível, livre de pressupostos, permite que detectemos sentidos que de outra forma não estariam disponíveis. Frequentemente, os resultados são equiparáveis a outros obtidos anteriormente. Há também muitos aspectos surpreendentes e originais que surgem ao ouvirmos estes pacientes, cujo discurso tem a força da autenticidade.

As palavras, surgidas das camadas mais profundas da memória colectiva, exprimem as pulsões mais actuais da pessoa que as pronuncia e têm a intensidade absoluta do verbo criador. A palavra que traduz a imagem é a manifestação de uma alquimia criadora do ser. A maior parte dos artigos do dicionário desenvolve-se em torno de uma convicção: ser é tornar-se!

A palavra do paciente é o resultado de um encontro entre um fundo imaginário e a estrutura organizadora da qual depende a verbalização. Ela é não só a testemunha mas também o agente activo deste devir.

2 thoughts on “O sonho acordado livre

  1. Sou psicólogo, formado pela UFMG e tive uma professora chamada Mary Norton que apresentou-nos a técnica de Robert Desoille. Cheguei a praticar um pouco num estágio no H.C. (Ambulatório Bias Fortes), mas não obtive todos as IMAGENS SIMBÓLICAS a serem utilizadas nos tratamentos. Gostaria de saber se alguém pode me ajudar nisso, porque penso em aplicar a técnica em uma paciente que começei a atender pela segunda vez e continua tendo muitos problemas psicológicos e físicos. Tem um rica vida onírica e acho que a técnica será muito adequada a ela. Obrigado!

    • Olá, Mauro Abrahão, viaje com sua paciente pela sonhos dela. Acompanhe-a com seu amor, sua atenção e inteligência. Ela lhe será grata e ficará progressivamente curada. Força aí!!

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