O livro

Georges Romey
Excertos adaptados

O livro

O livro conduz o imaginário do sonhador às camadas mais profundas da psique universal. Trata-se de um dos símbolos mais enraizados no inconsciente colectivo da humanidade. O livro dos sonhos é sempre um volume imponente, antigo, valioso na aparência e no conteúdo. Um volume que apenas se abrirá a um olhar disponível para acolher o sagrado.

É um dos adereços mais frequentes do velho sábio. A estreita correlação que encontramos entre os dois símbolos seria suficiente para justificar a interpretação do livro com um factor de mediação entre o passado e o futuro. O livro onírico é o fiel depositário de uma história acabada, de uma memória que persiste, mesmo que tudo pareça ter sido esquecido.

Encerra também um futuro que se expõe à compreensão do sonhador. Tal como o velho sábio, o livro conhece o Destino. Nos sonhos onde as suas páginas são desfolhadas, há sempre um despertar da psique, o fim de uma letargia da consciência, que se reanima e reencontra o prazer da evolução.

O livro do sonho encerra um conhecimento sagrado. O sagrado é aquilo que está disponível apenas para aquele que se encontra na disposição autêntica de realizar o caminho interior. O lugar onde a visão do livro se manifestará só é acessível mediante um esforço.

Normalmente, trata-se de um lugar subterrâneo. Haverá alguns degraus para sublinhar a ideia da descida que se impõe àqueles ou àquelas a quem será facultada a contemplação do livro. Espera-os uma surpresa: poderão ver mas não compreender. Pelo menos numa primeira etapa. O livro imaginário encontra-se escrito numa língua que escapa à razão.

O protótipo de todas as cenas onde o velho sábio segura o Livro do Destino encontra-se no texto de Voltaire que descreve o encontro entre Zadig e o eremita. Vamos reproduzi-lo aqui, uma vez que exprime a essência do símbolo e que os inúmeros exemplos oníricos por nós estudados apenas reproduzem, sob formas variadas, os elementos que o compõem:

Zadig encontrou no caminho um eremita, cuja barba branca e venerável lhe descia até à cintura. Tinha na mão um livro que lia atentamente. Zadig parou e fez-lhe uma profunda vénia. O eremita saudou-o de forma tão nobre e doce que Zadig teve vontade de ficar a conversar com ele. Perguntou-lhe que livro estava a ler. “É o livro dos destinos. Queres lê-lo?” Pôs o livro nas mãos de Zadig que, embora conhecesse várias línguas, não pôde decifrar o que lá estava escrito.

Voltaire inspirou-se num texto de Addison, publicado em 1711, no qual Addison retomava um excerto do Talmud (transcrição da tradição oral judaica e serve de código do direito judaico, canónico e civil. (N.T.)). Este excerto, baseado numa antiga lenda oriental, mostra que o homem é incapaz de desvendar os desígnios da Providência. Essa impossibilidade deriva do facto de utilizarmos a razão para compreender esses escritos.

Quando, no seu sonho, o paciente cede simbolicamente ao sono, ou seja, quando abandona a vontade de tudo dominar através da razão, o sentido do conteúdo do livro é-lhe revelado, como que por magia. O Livro do Destino nunca está escrito numa linguagem familiar. Mostra signos, figuras geométricas, hieróglifos, imagens.

O velho sábio partilha com o livro uma linguagem simultaneamente obscura e clara. O velho, expressão da sabedoria inata, comunica por gestos e signos; raramente o faz através da palavra. O livro é a expressão por excelência deste tipo de comunicação. Há dois exemplos que podem ilustrar o que acabamos de dizer: o de Charlotte e o de Hervé. Charlotte vê uma jovem que acaba de dominar um dragão que impedia o acesso a uma aldeia construída sobre um mar subterrâneo. Charlotte enche-se de coragem e mergulha nas profundezas desse oceano.

Apercebe-se da existência de uma segunda aldeia, réplica exacta da superfície:

…de repente, todas as casas iluminadas do fundo do mar apagaram as luzes…está escuro…avanço por tentativas…há uma luz muito ténue numa das casas. Bato no vidro da janela…entro e vejo um homem muito velho, um velho artesão, que trabalha à luz de uma vela sobre um velho manuscrito. Desenha signos que não compreendo muito bem: rodas, triângulos, coisas que se entrecortam, símbolos um pouco alquímicos…é ele que alimenta, através desta pequena vela, as luzes de todas as outras casas…diz-me que é importante que haja zonas de sombra e zonas de luz…

Numa montanha, Hervé encontra um amontoado de pedras, um túmulo, que começa a explorar durante vários dias. Descobre:

…utensílios, armas, ossadas…descubro também um livro, folhas de papiro cosidas, nas quais estão escritos hieróglifos incompreensíveis para mim…embrenho-me na montanha com o livro, tentando encontrar quem possa explicar-mo. O livro contém também desenhos, figuras geométricas muito complexas, e fico admirado de ver que uma coisa tão antiga possui elementos tão sábios. Encontro um velho que vive numa cabana, no bosque, e que começa a explicar-me o conteúdo do livro…estão lá todas as leis do universo que as pessoas que as escreveram conheciam através de uma compreensão perfeita da natureza e não através da ciência…

O livro assume também uma função de mediação. No caso de Charlotte, o velho sábio e o livro mostram à sonhadora o valor da sombra e da luz. A jovem tinha uma tendência excessiva para a sublimação e o sonho condu-la a um registo de vida mais realista.

Contudo, na maior parte das situações, o livro imaginário simboliza o tempo. Transporta o peso de todas as épocas da memória individual e colectiva e, por isso mesmo, contém o sentido profundo das coisas da vida, inacessível à razão. Christine diz num sonho:

…Anda tudo muito depressa; dir-se-ia que as páginas do livro se voltam muito depressa, como se se tratasse de um pião…não se consegue ver o que lá está escrito…dir-se-ia que se trata de um riacho…é o Tempo que se escoa, o navio do Tempo!…

Uma outra sonhadora, Rachel, exprimiu a ideia de que o livro onírico tem a capacidade de conferir ao ser uma unidade que depende da sua aceitação de um futuro permanente. Um livro sonhado contém tudo o que aconteceu e tudo o que está para acontecer.

Anula os compartimentos de tempo mensurável, que separam a consciência do campo ilimitado de um tempo total. Não deve funcionar como um refúgio, como um abrigo para a consciência medrosa, mas antes como um terreno do qual se alimenta a dinâmica da realização pessoal.

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