O outro mundo

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Georges Romey
Excertos adaptados

O outro mundo

Se há um lugar que recusa definições é o outro mundo. Se há expressões que nos causam medo, esta é uma delas. A sua evocação ativa um fundo de angústia metafísica que todas as almas possuem, mesmo que seja em estado latente. O outro mundo impressiona porque o vemos como um outro lado do mundo dos vivos. Mas só uma percentagem ínfima de sonhos estabelece essa correlação.

No vocabulário das imagens, o outro mundo é uma expressão que se inscreve no simbolismo da passagem. As cenas de travessia de um espelho ou de passagem através de um buraco negro são as mais constantes do símbolo. Este não equivale a um inverso da vida, mas a um além do consciente.

Penetrar num outro mundo, abandonar-se à força que nos impele para o buraco negro, são atitudes oníricas que revelam que os sonhadores querem abandonar as máscaras. Denunciam a fraqueza das sábias construções de defesa do eu. O acesso a valores recalcados ou que ficaram inconscientes, o estabelecer de novas ligações entre o inconsciente e o consciente, levam-nos a descobrir o que ignorávamos de nós mesmos.

Este alargamento do campo da consciência conduz a uma aceitação da progressão no desconhecido.  O outro mundo é um auxiliar ativo do verbo atravessar. Para além do limiar, encontram-se valores por vezes contrários àqueles que o consciente adotou. Esta expressão apela para uma dinâmica de conciliação dos opostos. Diante do outro mundo, a pessoa sente-se face a horizontes ilimitados, num espaço onde cada valor é enriquecido pelo seu contrário e vice-versa.

Vejamos alguns excertos de uma experiência de imaginação ativa (o sonho acordado livre) de Dominique:

É estranho! Via um lugar muito turístico, um porto cheio de lojas onde se vendiam coisas horrorosas que não serviam para nada… Como pano de fundo havia um barco de cruzeiro… sobreposta a esta imagem vejo uma espécie de Robinson Crusoe numa jangada, barbudo e maltrapilho… que chega a terra… Desço uma escada interminável… tenho a impressão de me enfiar num buraco negro… até que vejo que se trata da entrada num bosque… é como se estivesse a entrar noutro mundo… Todas estas imagens me fazem pensar numa forma de vida artificial… ou social, que dá origem a uma vida mais natural…já não há diferença entre elas, cada uma dá acesso à outra… não há ruturas… À entrada do bosque há uma luz, é como uma chama…há duas velas de cada lado… é algo de simples e de eterno ao mesmo tempo… de repente tudo muda… é como se o meu olhar pudesse abraçar a totalidade do mundo… tenho a impressão de ser um gigante e de assistir a uma cena em que o mundo é representado em miniatura… onde tudo se entrelaça como os elos de uma cadeia fechada… não há princípio nem fim… Sinto-me muito bem com estas visões…

O outro mundo exprime uma nova relação entre o campo da consciência e alguns valores que permaneceram inconscientes.

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Etienne Perrot
Les rêves et la vie
Paris, Editions du Dauphin, 1999

Relato de um sonho sobre o que se encontra para lá de uma parede

Encontrava-me deitada ao lado do meu marido e acordei, no sonho, num colchão pousado no solo. Tínhamos em cima de nós uma coberta que se confundia com o revestimento do chão. Ao abrir os olhos, vejo na parede em frente e, à esquerda, um orifício que, ato contínuo, me provoca um sentimento de angústia. Falo disso ao meu marido, que não reage nem parece acordar. “Do outro lado estão a olhar para nós, estão a espiar-nos.” Como ele nada faz, levanto-me do colchão e vou, angustiada, espreitar pelo orifício. Do outro lado não há ninguém, apenas uma divisão ampla e luminosa, tendo ao fundo uma porta-janela que dá sobre um espaço verde. Coloco a palma direita sobre o orifício e assusto-me. Sinto a minha mão aspirada por uma espécie de sucção. Grito, mas não obtenho nenhuma reação por parte do meu marido, que parece aconchegar-se ainda mais debaixo da coberta. Desorientada, apresso-me a fazer o mesmo e, em seguida, acordo.

Etienne Perrot:  a sonhadora encontra-se muito ligada à terra, pois está deitada no chão, com este como coberta. Mas sente-se atraída pelo que existe do outro lado, não do espelho, mas da parede, que é equivalente. O outro lado representa o inconsciente, aquilo que está para lá da consciência diurna, do estado de vigília. Esse inconsciente leva a um espaço mais amplo, em direção à totalidade que todos devemos atingir.

Curiosamente, o marido da sonhadora encontra-se num estado passivo. Este parece representar o polo racional, que não quer arriscar-se nesta aventura e que se mete ainda mais debaixo da manta. A sonhadora vence a sua inquietação e vai indagar. Do outro lado da parede vê luz e verdura, a vida em desenvolvimento. Mas isso não a impede de sentir medo, e coloca a mão sobre o orifício, sentindo uma força de sucção. É essa visão do mundo mais ampla que a atrai. O buraco encontra-se à esquerda, o lado simbólico do inconsciente, e ela tenta tapá-lo com a mão direita, o lado da racionalidade.

Apesar das suas reservas, ela anseia, de facto, por uma vida mais ampla, em que o seu lado interior silenciado pudesse ter lugar.

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