Fiar, tecer, bordar

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O ato de tecer: símbolo e mito

Desde os primórdios da civilização, podemos encontrar nos artefactos, como cestos e esteiras, trançados com fibras de folhas e cipós, as primeiras formas de tecelagem, talvez inspirados nas teias de aranhas e nos ninhos dos pássaros.

Considera-se que o trabalho feminino de preservação e manutenção da vida, da produção de artefactos de cerâmica e cestaria (ligada à função de nutrição), e dos primeiros tipos de roupa (ligada à proteção do corpo), foi um fator determinante na transformação do Homem natural num ser cultural.

Para os homens das sociedades tradicionais, todas as atividades humanas e artefactos têm um modelo mítico e foram ensinados pelas divindades. Esta atitude religiosa eleva e dignifica o trabalho humano, pois ao criar, segundo Mircea Eliade, o homem repete a cosmogonia.

A criatividade humana é, portanto, um reflexo do dom divino. Assim, por mais habilidoso que seja, o ser humano não deve pretender comparar-se à divindade. A confeção de tapetes, no Oriente, pode exemplificar essa atitude de humildade em relação ao dom da criatividade. Diz-se que os tapeteiros cometem sempre um erro deliberadamente, porque a perfeição é um atributo divino.

Em muitos mitos de origem, a criação do universo resulta de atividades técnicas, como modelar a argila, talhar a madeira ou tecer. A tecelagem aparece com um símbolo recorrente da criação, tanto do universo como da vida humana. O próprio Cosmos, segundo Mircea Eliade, é concebido como um tecido, como uma enorme rede. “No Cosmos, como na vida humana, tudo está ligado através de uma textura invisível.”

Por ser a tecelagem uma atividade basicamente feminina, quando a criação do mundo através dessa atividade é atribuída a um deus, ele compartilha com uma deusa da natureza a autoria da obra. O filósofo grego Ferekydes apresenta o mundo como um imenso manto tecido por Zeus (deus do céu) e Ctónia (deusa da terra), estendido sobre um carvalho, e contendo toda a natureza. O mundo como um tecido aparece, na tradição hindu, na conceção do véu de Maya, deusa do mundo das aparências.

O mistério primordial de tecer e fiar tem sido projetado sobre a Grande Mãe, que, como Princípio Feminino que abrange toda a natureza, é a primeira forma de divindade, precedendo as representações masculinas. É Senhora do Tempo, e consequentemente, do Destino. Governa o crescimento e o tempo cíclico, a alternância dia-noite, a mudança das estações, os ciclos de menstruação e a gravidez das mulheres. Como Grande Fiandeira ou como tríade lunar, fia não só a vida humana, mas também o destino do mundo.

Na Grécia, as Tecelãs do Destino eram as Moiras, três irmãs que determinavam o destino, tanto dos deuses, como dos seres humanos. Três mulheres, responsáveis por fabricar, tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida de todos os indivíduos. Durante o trabalho, as moiras fazem uso da Roda da Fortuna, que é o tear utilizado para se tecer os fios. As voltas da roda posicionam o fio do indivíduo na sua parte privilegiada (o topo) ou na sua parte menos desejável (o fundo), explicando-se assim os períodos de boa ou má sorte das pessoas.

Cloto, que em grego significa “fiar”, segurava o fuso e tecia o fio da vida. Atuava como deusa dos nascimentos e partos.
Láquesis, que significa “sortear,” puxava e enrolava o fio tecido. A sua função era sortear o quinhão de atributos destinados a cada um, em vida.
Átropos, que significa “afastar”, cortava o fio da vida, determinando o seu fim.

Em Roma, as Parcas, deusas fiandeiras que originalmente presidiam ao nascimento, passaram a ser identificadas com as Moiras.

Nos contos de fadas, encontramos frequentemente o tema e o simbolismo da fiação e da tecelagem, como nos contos Os seis cisnes e A Bela Adormecida. Neste, as fadas que comparecem ao batizado da criança representam as Queres, irmãs das Moiras (às vezes confundidas com estas), que presidiam aos ritos de nascimento na Grécia antiga.

As fadas têm, entre outros atributos, o dom da tecelagem de tecidos mágicos representativos do destino. Uma lenda europeia fala sobre as fadas protetoras dos bosques, que teciam tecidos maravilhosos e davam aos humanos um fio mágico para que estes não se perdessem na floresta. Vemos nessa lenda uma alusão ao mito de Ariadne na sua função de guia, que permite a saída do labirinto / bosque, símbolo do inconsciente.

O papel importante desempenhado pela tecelagem na vida das mulheres ao longo dos milénios e o processo pelo qual o fio é criado pelo giro do fuso e da roda, seguido do ato de tecer vários padrões em diversas cores, tornaram-no um símbolo efetivo da criação da ordem cósmica e da determinação dos destinos humanos.

Na tradição islâmica, o tear é símbolo da estrutura e do movimento do universo. Nas tradições populares, também se observam ritos que comparam o tecer à criação da vida. Na África do Norte, nas regiões montanhosas, em qualquer choupana humilde há um tear simples: dois rolos de madeira sustentados por dois montantes. O rolo de cima é o rolo do céu, e o de baixo, o rolo da terra. Quando o trabalho de tecelagem está pronto, os fios que o prendem são cortados, enquanto se pronuncia a mesma bênção feita pelas parteiras ao cortarem o cordão umbilical dos recém-nascidos. As mulheres antigas associavam-no ao nascimento, sendo evidente o elo entre tecer e dar à luz.

O fio da vida e o labirinto são dois elementos simbólicos interligados. Segundo Eliade, “O labirinto é concebido , às vezes, como um nó que deve ser desatado”. “Em todos os lugares, o objetivo do homem é libertar-se das ‘amarras’: a iniciação mística do labirinto (…) corresponde a uma iniciação filosófica, metafísica, cuja intenção é rasgar o véu da ignorância e libertar a alma das correntes da existência”.

Fiar, tecer, bordar, narrar

No mito e na arte, a tecelagem pode aparecer como uma forma de narrativa. Em culturas de diversos lugares e épocas, os painéis e tapeçarias são, não somente ornamentos, mas também documentos, traduzindo, em imagens tecidas, factos históricos, mitológicos, ou cenas da vida quotidiana.

Como afirma Rachel Martins, “Às mulheres não foi dado durante séculos escrever. Elas traçavam sinais de criação usando linhas enfiadas em finos orifícios, em teares, manipulando pequenos instrumentos de fabricação caseira. Com isso, transfiguravam o mundo, escrevendo signos que substituíam as palavras.” O mesmo se passa com o ato de bordar: “Aprendi a bordar com cinco anos e minha escritura não pode ignorar isso. (…) Meu estilo de escrever, nasceu quem sabe, aí, pois o pensamento acompanhava a mão. Nunca tinha antes, pensado nisso. Estou começando a afirmá-lo agora que minha mão volta a adestrar-se na arte de bordar. Minha cabeça, enquanto isso, divaga, como a de minha mãe fazia. Não é só a mão que borda. A cabeça também.”

Cada bordado pode ser visto como uma narrativa, uma história de vida, que, uma vez bordada, abre caminho a novas histórias e projetos da alma feminina. Na mistura de linhas e cores, as formas aparecem e trazem consigo memórias. Cada bordado é diferente, mesmo que o risco seja o mesmo. “Bordar e narrar têm um caráter curativo, ordenador. Ao bordar, ao contar e reinventar um novo traçado para a sua própria história é possível mudar esta história, reinventar um novo desenho.” (Lélia Almeida)

Ana Maria Machado utiliza o simbolismo da tecelagem para descrever os seus sentimentos durante o processo de criação: “Quando estou escrevendo alguma obra de ficção mais complexa, sempre fico assim, me sentindo muito ligada a tudo que está se criando na natureza em volta de mim. Além disso, a noção de que existe uma estrutura subjacente, um projeto inconsciente segundo o qual se ordena a criação, é uma velha obsessão de quem escreve. Nem chega a haver novidade alguma em associar essa força regente a elementos de tecelagem e tapeçaria.”

E no seu artigo intitulado “O Tao da Teia: sobre textos e têxteis”, a mesma autora afirma:
“Tenho em minha memória pessoal uma permanente tensão entre os livros e os trabalhos de agulha. Em pequena, gostava de ler e lia bem (e muito). Aprendi a bordar e gostava. Fiz crochê e tricô, alguma coisa de costura. Mas não fazia bem, estava muito longe da perfeição.(…) De qualquer modo, era evidente que a culpa de o bordado não ser perfeito não era dos livros. Não havia motivos reais para que a cultura dominante tentasse apresentar o estudo e os trabalhos de agulhas como incompatíveis, a leitura como um obstáculo à feminilidade. A não ser o mecanismo para manter a mulher ignorante – e, portanto, obediente, reclusa, sem iniciativa própria, confinada ao âmbito doméstico.

Muito mais tarde, fui percebendo que essa dicotomia não era só minha, nem apenas de minha geração. Em Dom Casmurro, de Machado de Assis, Capitu resolve aprender a fazer renda com dona Glória – quando não consegue que lhe ensinem latim, que tanto desejava saber, mas que lhe negam porque não é coisa de meninas. Algumas décadas depois, do outro lado do Atlântico, a romancista inglesa Virginia Woolf reclamava porque não lhe permitiram estudar grego clássico, conhecimento que era privilégio dos homens, garantindo-lhes assim o monopólio da leitura dos clássicos, raramente traduzidos para o vernáculo. Também já escrevi sobre isso em outro romance, A audácia dessa mulher.”

Apesar de vivermos hoje numa cultura da palavra escrita, a padroeira de textos e têxteis bem podia ser uma contadora oral, como tantos homens e mulheres pelos séculos afora, cuja palavra conseguiu nos chegar. Alguém como Ananse, a aranha narradora que aparece na tradição dos mais diversos povos africanos e a quem, em De olho nas penas, eu já dei a palavra para que se apresentasse:

Há muito tempo atrás, quando os deuses ainda eram os únicos donos de tudo, até das histórias, eu resolvi ir buscar todas elas para contar ao povo. Foi muito difícil. Levei dias e noites, sem parar, tecendo fios para fazer uma escada até o céu. Depois, quando cheguei lá, tive que passar por uma porção de provas de esperteza, porque eles não queriam me dar as histórias, que viviam guardadas numa grande cabaça. (…)

Consegui vencer e ganhei a cabaça com todas as histórias do mundo. Na volta, enquanto eu descia a escada, a cabaça caiu e quebrou, e muitas histórias se espalharam por aí, mas quando eu conto, vou desenrolando o fio da história de dentro de mim, e por isso sai melhor do que quando os outros contam. Por isso, todo mundo pode contar, mas toda aldeia tem alguém como eu, algum Ananse que também conta melhor essas histórias. E quem ouve também sai contando, e fazendo novas, e trazendo de volta um pouco diferente, sempre com fios novos, e eu vou ouvindo e tecendo, até ficar uma teia bem completa e bem forte. Só com uma teia assim, toda bonita e resistente, é que dá para aguentar todo o peso de um povo, de uma aldeia, de uma nação, de uma terra.”

A criatividade é um dom nato à espera de um canal de expressão. Pela arte do bordado, e outras expressões da arte têxtil, pela música, pelo corpo em movimento, pelas tramas das histórias de vidas, ou pela produção de textos coletivos é possível tecer uma teia e redes solidárias, com matizes de cores poéticas e prenúncios de uma nova vida.

Penélope e a moça tecelã

O trabalho repetitivo de Penélope, tecendo e desfiando, dia e noite, sem completar a sua tarefa, foi uma estratégia escolhida pela heroína para não ter de aceitar outro pretendente, esperando o retorno do marido, numa tentativa de “parar o tempo”.

O padrão cíclico que estabeleceu, tal qual os ritmos da natureza, revela, mais do que uma tática racional, uma profunda conexão com sua essência feminina. A sua fidelidade, é, acima da lealdade ao marido, uma fidelidade a si mesma, à manutenção da sua autonomia.

Tal como Penélope, também a personagem feminina do conto A moça tecelã, de Marina Colasanti, é chamada a viver uma experiência de busca de autonomia. No início, a personagem é livre e autossuficiente, criando o seu mundo através de um tear. Mas, passado algum tempo, sentindo o peso da solidão, começa a tecer um marido com quem compartilhar a vida. Este surge, de facto, e durante algum tempo são felizes. Porém, quando ele descobre o poder do tear, deixa-se invadir por sonhos de grandeza e multiplica as suas exigências, obrigando-a, por fim, a tecer uma torre onde ficaria encerrada juntamente com o seu tear. Magoada e desiludida, a jovem decide então destecer o marido para poder recuperar a sua liberdade.

Do mesmo modo que os símbolos do inconsciente, que parecem eclodir num “passe de mágica”, a jovem tecelã desperta do torpor em que se encontrava e descobre o caminho de volta. O fio que desmancha é como o do novelo de Ariadne, mostrando a saída do labirinto. Retoma o controle de sua obra e de sua vida. Desfaz o que teceu e chega de novo ao ponto de partida, porém transformada.

Penélope e a moça tecelã, ao tecer e desfiar a seu próprio gosto, mantendo, sob a forma de fio no tear, o controle de suas vidas, estão conectadas com sua verdadeira natureza. A natureza feminina representada pela Grande Mãe primordial, detentora dos poderes de criação e destruição, de morte e de vida. Tecelã do Destino.

Cada um de nós pode, sem afrontar a Grande Tecelã, tomar nas mãos o seu pequeno tear individual e fiar, tecer, narrar a sua própria história.

Pode ler o conto A Moça Tecelã aqui

Conclusão

Terminamos esta reflexão com um texto de Cecília Prada, intitulado Fios Emaranhados, em que a aurora faz um paralelismo entre a sua vida e o ato de coser, tecer e bordar:

Fios Emaranhados 

Hoje quero escrever uma coisa assim, de fios. Dos fios detectados, dos que nos sustentam. Fantoches somos na mão invisível de alguém que nos manipula? Ou, simplesmente, falar dos múltiplos fios em que estamos todos enrolados, na imensa rede que não foi inventada pela indústria da comunicação virtual, como se poderia pensar numa simplificação – mas na enorme rede da vida. Pior: do cosmo. E que nós, pobres fiozinhos atormentados e complicados no nosso emaranhamento, temos a pretensão de querer entender, desenrolar. Enfim – ridículas formiguinhas.

Anos atrás inventei a pretensão de contar minha vida, para entendê-la um pouco. Se fracassei quanto ao livro pronto, amontoei quilômetros de entulho literário feito de coisas e loisas, e amores e desamores, e desesperos e retemperos, material que está todo por aí, pelas gavetas dos móveis, do micro, do Ser – um dia será amarrado em pacote, espero, e definitivamente selado e entregue.

Enquanto isso, indago consistente: que fio afinal usarei para amarrar esse pacote de mim? Que fios usarei para bordar a eterna tapeçaria que nós mulheres tecemos (desde aquela nossa protoavó Penélope) para deixar em legado à família ? – para que em mim não se cumpra o destino das mulheres silenciadas, tias-avós de diários bolorentos jogados fora pelo primeiro sobrinho aparecido após o enterro, versos escritos com aplicada letra de curso primário, indefectíveis rosas secas dentro de um livro esmaecido, e os murmúrios, e os lamentos que ressoam em todos os haréns, em todas as salas de todas as famílias.

Ou simplesmente morrerei de boca costurada, como foi durante tanto tempo o destino das mães e avós loucas?

Mas não é fácil contar esta história um tanto estranha, feita de tantos pedaços, te confesso. Não é fácil costurar seus elementos – que linha usarei, pois?

A linha da mediocridade, comprada na feira, parda e resistente, que minha avó italiana usava para cerzir eternamente, num ovo de madeira, as meias da família? Minha avó que nunca falava, que morreu silenciosamente aos 97 anos, doce e apagada velhinha de cabelos de algodão e olhos azuis.

A linha triste e discreta com que me costuravam os botões do uniforme azul-marinho do externato de freiras? Ou talvez eu deva escolher, por que não? algum dos fios mais brilhantes que me foram concedidos pela vida, tons rosa-salmão do meu primeiro vestido de baile? Ou o fio de cetim imaculado do vestido de noiva? Ricas nuanças de tapeçarias medievais? (não fui por acaso castelã e prisioneira?) Ou espargir pelo meu livro as cores, nunca reveladas, daquela imensa, interminável, milenar tapeçaria que nossa protoavó Penélope desdobrou sobre toda a humanidade?

– e cujo risco ninguém, nunca, se preocupou em saber qual era…

Não. Já sei. Usarei, para tão digno bordado, aquele fio de seda mista que as freiras já no primeiro ano primário queriam nos obrigar a usar, com paciência nos adequando para as exigências da vida: enfiar, e enfiar de novo, e mais uma vez, e sempre, uma linha enfezada e resistente na agulha fina de buraco que se esquivava manhoso em um trabalho de amostras de pontos de bordado, um paninho de linho branco que se queria – como tudo para nós – puro, imaculado. E que só eu, a menina má, amarfanhava num canto da pasta, retirando-o de má vontade, medrosa, na hora de trabalhos manuais. E minha linha, só a minha, parecia se obstinar em criar nós e complicações.

(Como estas urdidas – ardidas? – memórias de hoje.)

Irmã Louise, vermelhona, de pelos no rosto, me dizendo, vidente, talvez: “Mas isto não é um mostruário. É um monstruário.” Teria ela realmente seus dons? Veria já no paninho encardido, sujo de tinta, vergonhoso, de linhas emaranhadas, alguns dos lagartos, das serpentes, das complicações existenciais em que eu me veria mais tarde colhida?

Segredo: ah, no meio do pano encardido bordei uma tosca florzinha inventada, com linhas gloriosamente espalhafatosas, azul-real, verde-pavão, vermelho-sangue. Depois disse para a freira que tinha perdido meu pano de amostras – que me dessem outro, talvez tenham me dado, nem me lembro o que aconteceu com ele. Mas a aprendiz de bordadeira seguiu e segue vida afora emaranhada na teimosia de tantos nós, tantas linhas enfezadas alinhavando pontos impossíveis – tentando lembrar qual era aquela flor inventada com todos os tons brilhantes da esperança, um dia.

bordado 1 m

 

 

1 thoughts on “Fiar, tecer, bordar

  1. Boa tarde! Este texto é excelente, porém deveria ser dado crédito à autora que é a Célia Gago.

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