O Retorno do Herói

Carol Pearson
The Hero Within
San Francisco, Harper & Row, 1989
Excertos adaptados

O Retorno

O mito clássico do herói descreve o reino como um deserto. As colheitas não crescem, a doença campeia, os bebés não nascem, a alienação e o desespero imperam. A fertilidade e o sentido da vida desapareceram do reino. Esta situação está relacionada com algum fracasso do rei, que é impotente, malvado ou despótico. O aspirante a herói empreende uma jornada, enfrenta um dragão e conquista um tesouro, que pode ser composto de riquezas materiais ou de um objecto mais simbólico (o Graal, nos mitos do Graal, ou um peixe sagrado, nos mitos do Rei Pescador). Quando o herói, habitualmente um homem, regressa, é coroado rei. O seu regresso transforma magicamente o reino: começa a chover, as colheitas crescem, os bebés nascem, a praga é debelada e as pessoas voltam a ter esperança e a sentirem-se vivas.

Heróis não são apenas as pessoas que crescem, mudam e empreendem as suas jornadas, mas também aquelas que ajudam a transformar o reino. Em The Hero: Myth/Image/Symbol, Dorothy Norman afirma que “os mitos dos heróis falam mais eloquentemente da busca do homem que escolhe a vida, e não a morte”. Joseph Campbell, em The Hero With a Thousand Faces, define o herói como “o campeão não das coisas transformadas, mas das coisas em transformação: o dragão que deve ser exterminado por ele é precisamente o monstro do status quo.” A tarefa do herói consiste sempre em infundir vida nova numa cultura agonizante.

Os heróis do nosso tempo têm exactamente a mesma função. Porém, diferem dos anteriores num aspecto essencial. Em vez de ser apenas uma pessoa a ter de empreender a busca e a ter de legar uma nova verdade ao reino, passamos a ser todos nós a precisar de o fazer. O heroísmo nesta era exige que empreendamos as nossas jornadas para encontrarmos o tesouro do nosso verdadeiro ser e que compartilharmos esse tesouro com a comunidade como um todo. À medida que o fizermos, os nossos reinos serão transformados.

Quando lemos os jornais, parece-nos que pouca coisa está a mudar – ou que as coisas estão a piorar, e não a melhorar. De facto, em tempos de transformação social maciça como estes, as coisas sempre melhoram e pioram simultaneamente. As sementes do novo mundo são plantadas nas ruínas do velho mundo, mas é ainda o velho mundo que ocupa as páginas dos jornais. Em tempos de transição não existe um reino, mas um número infinito de reinos. Trata- se de uma época marcada por esforços para encontrar um novo consenso.

No início da nossa busca, sentimo-nos solitários e separados do mundo, e partimos do pressuposto que, para nos ajustarmos, temos de nos adaptar àquilo que acreditamos ser a “realidade”. Contudo, à medida que mudamos, a realidade também muda. Quanto mais temos a coragem de sermos nós mesmos, mais hipóteses temos de viver em comunidades que estejam em sintonia connosco. Assim, a recompensa da jornada inevitavelmente solitária do herói é a comunhão – comunhão com o seu ser, com as outras pessoas e com os universos natural e espiritual. No fim da jornada, o herói sente que está em casa, e que a sua casa é o mundo.

Isso não significa o fim dos problemas. A realização das nossas jornadas não nos exime da vida; enfermidades, mortalidade, desilusões, traições e até mesmo fracassos, fazem parte da condição humana. Mas, se temos fé em nós mesmos e no universo, torna-se muito mais fácil suportar tudo isso. Ademais, como os heróis enfrentam os seus medos, não ficam tão limitados por eles. Podemos agir sem nos preocuparmos continuamente se estamos a agir correctamente, se alguém nos reprovará ou se alguém nos vai surpreender em falta.

Como explica Gerald Jampolsky em Love Is Letting Go of Fear, todas essas camadas de medo são justamente o que nos impede de experimentar o amor que se encontra dentro de nós. Quanto mais conseguimos libertar-nos dos nossos medos, mais podemos mergulhar na força vital que encerramos. Quando temos receios constantes, não podemos usufruir da energia espiritual fundamental ao nosso alcance.

Se tememos a natureza e a consideramos inferior ao espírito, um local de perigos onde animais selvagens ou insectos nos devoram, não poderemos ser nutridos por ela. Se receamos as outras pessoas, se tememos ser rejeitados, ridicularizados ou humilhados pela sua pretensa sabedoria, não podemos experimentar a profundidade do amor e da entrega. Por isso empreendemos a nossa jornada solitária: para que possamos viver em amor e harmonia connosco mesmos e com os outros, para que possamos ser banhados pelo fluxo de energia amorosa que nos circunda constantemente. Essa energia provém de dentro de nós, de outras pessoas, dos mundos natural e espiritual. Está sempre disponível. A tarefa do herói consiste em desenvolver o Si Mesmo [o nó mais íntimo da Consciência] o suficiente para a receber, sem receio de nos perdermos nela ou de sermos esmagados pelo seu poder.

No contexto clássico antigo, o herói tornava-se rei – ou rainha. Talvez tornar-se rei ou rainha signifique responsabilizar-se – não apenas pela nossa realidade interior, mas pela forma como os nossos universos exteriores espelham esta realidade. Se assumimos a responsabilidade de governar o reino, isso significa que, quando os nossos reinos se assemelham a desertos, está na hora de buscar uma nova energia. Talvez nos tenhamos acomodado em demasia e tenhamos parado de crescer.

Seja o que for que façamos com o fito de melhorarmos o mundo em que vivemos, a nossa tarefa fundamental consiste sempre em realizarmos as nossas jornadas. Caso contrário, em vez de trazermos mais vida ao mundo, tornamo-nos buracos negros, vácuos que tragam a vida. Por mais que tentemos dar, na realidade consumimos a energia vital daqueles que nos cercam, empobrecemos os nossos mundos e tornamo-los menos vivos.

Como explica James Hillman em Re-Visioning Psychology, as nossas jornadas, e sobretudo os nossos encontros com os arquétipos, falam da “formação da alma”. Empreendemos as nossas jornadas para desenvolver as nossas almas. Colectivamente, estamos a criar a alma do mundo. O reino macrocósmico onde vivemos reflecte o estado dessa alma do mundo.

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